quarta-feira, 29 de junho de 2016

Evolução e a ética hacker no mundo atual, um breve apanhado

Esta semana reli o livro do Pekka Himanen, sobre a ética hacker. Gosto muito dessa obra e vale registrar as impressões. O mundo assiste ao crescente da produção de programas de computadores (os softwares) a partir de construções coletivas, onde diversos tecnólogos entusiastas (programadores), denominados Hackers, doam tempo e conhecimento, em prol da evolução desses softwares. Eles estão em todos os lugares do planeta onde há redes de computadores, falam línguas diversas, tem culturas diferentes e já atuam há décadas, sempre de maneira coletiva. Esses programadores criaram o movimento do software livre e um sistema operacional que disputa com as mega-gigantes Microsoft e Apple, seus usuários. Estou falando do Linux, e da ação conjunta de pessoas unidas por uma causa, que trabalham em horários alternativos para que sistemas operacionais e programas sejam cada vez melhores e distribuídos para mais pessoas. 
A análise dos métodos de trabalho, da cultura e do comportamento desses grupos Hackers tem gerado muitos estudos. Li VLEF, do Tiago Melo, há alguns meses e ele fala muito desse universo. Também é sobre inteligência coletiva e algumas peculiaridades de comportamento e valores dos hackers, que Pekka Himanen trata em sua obra. 

O livro tem três partes, assim divididas: A ética do trabalho; a ética do dinheiro e a ética da rede. Os temas são desenvolvidos em sete capítulos, que traçam um paralelo entre a ética protestante e o espírito do capitalismo (com base na obra de Max Weber, escrita em 1904) e a ética dos programadores com este espírito cooperativo de rede, na era da informação. O livro tem prefácio de Linus Torvalds e posfácio de Manuel Castels. A versão em português tem uma capa com ilustração estranha, já que o livro não trata dos crackers ( os programadores que invadem sistemas) e mais, utiliza um segundo subtítulo ‘a diferença entre o bom e o mau hacker’, que em momento algum é tema da obra. A capa, em português, parece um atrativo para vender o livro, em contraposição à divulgação da grande mídia que teima em associar a palavra hacker aos processos ilícitos que acontecem na internet.

O prólogo de Linus Torvalds, criador do Linux, é uma explicação sobre as forças que contribuíram para o êxito do hackerismo. Com a ‘Lei de Linus’, Torvalds estabelece as três categorias de motivações que nos levam a um processo evolutivo na vida. Pela ordem, o autor nos apresenta a motivação da sobrevivência, básica a qualquer ser humano. Em seguida, a nossa vida social, que nos leva a querer ser aceitos, viver em sociedade e até, em um extremo dessa motivação, a morrer pela pátria. Por fim, a terceira motivação seria o entretenimento, definido como exercício mental extremamente interessante e capaz de plantar desafios. Para ilustrar seus argumentos, ele exemplifica o extremo da terceira motivação: alguém que pula de pára-quedas e põe em risco a própria vida (em contraposição à motivação da sobrevivência), está buscando um desafio para não morrer de tédio.

Dinheiro, sexo, comida, guerra... para o autor do prólogo, tudo isso interfere na sobrevivência, se for só para manutenção do homem, mas na atualidade, envolve processos sugestivos que desafiam o ser humano, e por isso estão classificado como entretenimento. Ganhar mais dinheiro do que se possa gastar, fazer sexo sem necessidade de procriar, a gastronomia enquanto hobby ou a guerra enquanto conquista televisionada em nível internacional, se transformaram em ‘jogos’.

Por fim, Torvalds analisa os hackers e sua motivação para o trabalho que desenvolvem. Criar um programa proporciona grande entretenimento e ainda se alcança repercussão social (segunda motivação).

Pekka Himanen inicia a primeira parte do livro com uma análise sobre a ética dos hackers no trabalho. Para um hacker, o computador é pura diversão, cujo processo de programação envolve ludicidade e excitação. O desejo de continuar aprendendo também os motiva, é como dominar a máquina, e programar se torna um estilo de vida apaixonante. O autor encontrou paixão igual no processo de aprendizagem que envolvia Platão e seus discípulos, os artistas, artesãos, pesquisadores e aqueles que trabalham com meios de comunicação.

Himanen não fala sobre ética individual dos programadores, mas sim do comportamento em rede, que põe em juízo a ética protestante de trabalho, que há tempos vigora na sociedade capitalista e exerce influência em nossa vida.  Há mais de cem anos Max Weber  (1864-1920)  descreveu a noção de trabalho no espírito capitalista. A obrigação de ter uma profissão, com horários e regras determinadas e retorno financeiro que permita a sobrevivência. O trabalho como vocação, fim absoluto em si mesmo. Himanen cita autores que escreveram sobre o trabalho (principalmente autores ligados à religião) e faz um contraponto entre o trabalho em rede colaborativa. O Hacker trabalha sem horário fixo, sem a pressão do patrão exigindo resultados, sem visar o lucro ao final da tarefa. E mesmo sem essas pressões, há disciplina, motivada pela paixão em obter resultados que o tornem reconhecido por seus pares. Para o autor, a lógica dessa ética está justamente em burlar o já conhecido comportamento vigente no capitalismo.

No segundo capítulo, a relação do tempo dedicado ao trabalho na ética protestante é comparada ao uso do tempo no universo hacker. Se tempo é dinheiro, é perda de tempo se dedicar a um trabalho sem remuneração? A relação com o tempo dedicado ao trabalho, na ética protestante, se limita à obrigação de trabalhar em horário pré-determinado em horas e dias, pois trabalho é sacrifício. Na era da informação, o tempo ganhou uma racionalização ainda maior, pois a velocidade das inovações tecnológicas propõe o imperativo da corrida contra o relógio. Para os hackers, trabalho é prazer e eles trabalham em horários alternativos. A flexibilidade propõe o trabalho lúdico, onde e quando quisermos, por isso é possível ser feliz em horário comercial, e usarmos a madrugada para trabalhar, pois a rede não pára. Assim o hacker trabalha quando a criatividade o motiva, cumpre suas tarefas e não sua jornada e assim, tem tempo para ‘viver’.

Himanen analisa ainda a ética do dinheiro, como motivo e interferindo no processo de vida e aprendizagem do ser humano. Na ética protestante a semana era dedicada ao trabalho e o domingo era dia sagrado ao descanso. Mas se dinheiro é um fim em si mesmo e a lógica capitalista dita o tempo (ritmo de trabalho), então domingo atualmente é dia de labuta, pois o consumo é motivação. Diferente do ritmo de trabalho hacker, que concebe um domingo de trabalho, se na quinta ou sexta o tempo foi dedicado à família. No capitalismo o domingo de trabalho é puramente para aumento dos lucros.
No campo da aprendizagem, para o capitalismo as boas idéias são propriedades de quem as teve, principalmente se geram dinheiro. Então compartilhar informação, como bem poderoso e positivo não se explica. Mas um grupo se difere, até mesmo no capitalismo, com um modelo aberto de gerar conhecimento: a comunidade científica, que historicamente sempre trabalhou partindo de um problema ou objetivo no qual o indivíduo tem interesse pessoal e é um entusiasta, acha sua solução particular e qualquer um poderá utilizar, criticar e desenvolver esta solução. Mais importante que qualquer resultado final é a informação ou cadeia de argumentos subjacente que produziu a solução.  As fontes sempre são citadas e a nova solução não pode ser mantida em segredo e sim publicada novamente. E esse modelo sem ausência de estruturas rígidas, que congrega paixão e trabalho em grupo, está na prática hacker, que parte em busca da solução de problemas e submete seus resultados a diversos testes. Aprender cada vez mais é o objetivo desse universo e um professor ou pesquisador, neste universo, é alguém que, muitas vezes, acabou de aprender e já quer ensinar. Himanen denomina esse processo de ‘Academia da Rede’. 
Na última parte da obra, o autor fala sobre a ética da Rede e a netiqueta (boas maneiras observadas na comunicação na Rede) e sobre o espírito do informacionalismo. Segundo ele, quanto mais eletrônica se torna nossa era, mais deixamos vestígios ao navegar pela rede, fazer compras nas lojas, preencher cadastros em repartições ou ao responder questionários em sites de pesquisa. Nossos dados estão a todo momento sendo analisados, construindo um perfil de usuário, que deixamos ao usarmos cartões de crédito, fazermos transações bancárias, utilizarmos a internet e até mesmo o celular. Por isso os Hackers estão preocupados com a privacidade e com a proteção dos dados dos usuários da rede e prezam pela segurança no mundo virtual. A autoprogramação, o aumento do tempo dedicado à Rede, a necessidade de manter-se atualizado com as inovações crescentes, que teimam em nos deixar obsoletos com relação aos conhecimentos gerados na nova tecnologia, nos faz dedicar cada vez mais horas ao  trabalho. E esse é o espírito do informacionalismo.
No informacionalismo, há o resgate de virtudes do desenvolvimento pessoal, no sentido de racionalizar o tempo e o esforço gastos nas atividades, já que há informações demais, é preciso filtrar, selecionar e tomar as melhores decisões. Por isso é preciso ter determinação, tranqüilidade, otimizar os processos _ ser efetivo no ‘agora’; ser flexível _disposto a mudar conforme as necessidades; ter estabilidade  _ manter a constância na busca do objetivo; ter dedicação; ter consciência do valor do dinheiro necessário para realizar desejos; contabilizar resultados. E são essas virtudes que transformam a rotina nesses novos tempos: a rotina dos processos nos negócios está em alteração, as linhas de produção desnecessárias são eliminadas, as lentas são remodeladas de tal forma a serem efetivamente produtivas, afinal a automação elimina tempo perdido. E todo esse sistema passa a ser metáfora para explicar a ética que rege o informacionalismo. Com esta ética virtual em voga, o autor percebe dificuldades na aplicação da ética real. A lógica da velocidade, que tanto impera no informacionalismo, é talvez a pior barreira para que a ética real aconteça. Como se, em busca pela otimização, automação, e tudo o mais que rege esta era que vivenciamos, a ética fosse algo à parte. E é exatamente isso que preocupa o autor, que vê na ética Hacker um caminho diferente de comportamento na Rede.
Por isso Himanen propõe sete valores da ética hacker: paixão (entusiasmo que move a aprendizagem); liberdade (com o código aberto que permite o compartilhamento de conhecimento; com o tempo, que os livra da rotina e da jornada de trabalho e os deixa livres para trabalhar como e quando querem); valor social e abertura (que possibilita receber reconhecimento ao compartilhar conhecimento, tornando-o comum a todos); atividade (que envolve a liberdade de expressão em ação e privacidade para proteger seu estilo individual de levar a vida e desprezo frente à passividade): e cuidar (se preocupar com o futuro da sociedade virtual de tal forma que oportunize a todos uma garantia de acesso). Esses valores juntos, levam ao último estágio, quando o hacker se torna criativo porque utiliza suas habilidades, superando-se, e dando ao mundo contribuições valiosas.
Por fim, a obra nos apresenta um posfácio, escrito pelo sociólogo Manuel Castels, que retoma o contexto em que vivemos e as mudanças do paradigma da era industrial para a era da informação.
A ética Hacker e o espírito da era da informação é um livro positivo, porque aponta para uma cultura e uma ética mais humana neste contexto vigente que é o capitalismo. É muito bom ver luz no fim do túnel. As transformações éticas que vinculam tecnologia, democracia e desenvolvimento social e humano já começaram. Mas sem ingenuidade, pois é um  processo ético lento, que envolve uma minoria, pois o capitalismo tem teias amplas e o dinheiro ainda é um valor forte em si mesmo, mas pelo menos, é um começo. E tomar consciência que a colaboração é o caminho humano que resta. 
Vale a pena ler este livro. 

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