Esta semana reli o livro do Pekka Himanen, sobre a ética hacker. Gosto muito dessa obra e vale registrar as impressões. O mundo assiste ao crescente da
produção de programas de computadores (os softwares) a partir de construções
coletivas, onde diversos tecnólogos entusiastas (programadores), denominados
Hackers, doam tempo e conhecimento, em prol da evolução desses softwares. Eles
estão em todos os lugares do planeta onde há redes de computadores, falam
línguas diversas, tem culturas diferentes e já atuam há décadas, sempre de
maneira coletiva. Esses programadores criaram o movimento do software livre e
um sistema operacional que disputa com as mega-gigantes Microsoft e Apple, seus usuários. Estou falando do Linux, e da ação conjunta de pessoas unidas por uma causa, que trabalham em horários alternativos para que sistemas
operacionais e programas sejam cada vez melhores e distribuídos para mais
pessoas.
A análise dos métodos de trabalho, da cultura e do comportamento
desses grupos Hackers tem gerado muitos estudos. Li VLEF, do Tiago Melo, há alguns meses e ele fala muito desse universo. Também é sobre inteligência
coletiva e algumas peculiaridades de comportamento e valores dos hackers, que Pekka Himanen
trata em sua obra.
O livro tem três partes, assim
divididas: A ética do trabalho; a ética do dinheiro e a ética da rede. Os temas
são desenvolvidos em sete capítulos, que traçam um paralelo entre a ética
protestante e o espírito do capitalismo (com base na obra de Max Weber, escrita
em 1904) e a ética dos programadores com este espírito cooperativo de rede, na
era da informação. O livro tem prefácio de Linus Torvalds e posfácio de Manuel
Castels. A versão em português tem uma capa
com ilustração estranha, já que o livro não trata dos crackers ( os programadores
que invadem sistemas) e mais, utiliza um segundo subtítulo ‘a diferença entre o
bom e o mau hacker’, que em momento algum é tema da obra. A capa, em português,
parece um atrativo para vender o livro, em contraposição à divulgação da grande
mídia que teima em associar a palavra hacker aos processos ilícitos que
acontecem na internet.
O prólogo de Linus Torvalds,
criador do Linux, é uma explicação sobre as forças que contribuíram para o
êxito do hackerismo. Com a ‘Lei de Linus’, Torvalds estabelece as três
categorias de motivações que nos levam a um processo evolutivo na vida. Pela
ordem, o autor nos apresenta a motivação da sobrevivência, básica a qualquer
ser humano. Em seguida, a nossa vida social, que nos leva a querer ser
aceitos, viver em sociedade e até, em um extremo dessa motivação, a morrer pela
pátria. Por fim, a terceira motivação seria o entretenimento, definido como
exercício mental extremamente interessante e capaz de plantar desafios. Para
ilustrar seus argumentos, ele exemplifica o extremo da terceira motivação:
alguém que pula de pára-quedas e põe em risco a própria vida (em contraposição
à motivação da sobrevivência), está buscando um desafio para não morrer de
tédio.
Dinheiro, sexo, comida, guerra...
para o autor do prólogo, tudo isso interfere na sobrevivência, se for só para
manutenção do homem, mas na atualidade, envolve processos sugestivos que desafiam
o ser humano, e por isso estão classificado como entretenimento. Ganhar mais
dinheiro do que se possa gastar, fazer sexo sem necessidade de procriar, a gastronomia
enquanto hobby ou a guerra enquanto conquista televisionada em nível
internacional, se transformaram em ‘jogos’.
Por fim, Torvalds analisa os
hackers e sua motivação para o trabalho que desenvolvem. Criar um programa proporciona
grande entretenimento e ainda se alcança repercussão social (segunda
motivação).
Pekka Himanen inicia a primeira parte
do livro com uma análise sobre a ética dos hackers no trabalho. Para um hacker,
o computador é pura diversão, cujo processo de programação envolve ludicidade e
excitação. O desejo de continuar aprendendo também os motiva, é como dominar a
máquina, e programar se torna um estilo de vida apaixonante. O autor encontrou
paixão igual no processo de aprendizagem que envolvia Platão e seus discípulos,
os artistas, artesãos, pesquisadores e aqueles que trabalham com meios de
comunicação.
Himanen não fala sobre ética
individual dos programadores, mas sim do comportamento em rede, que põe em
juízo a ética protestante de trabalho, que há tempos vigora na sociedade
capitalista e exerce influência em nossa vida. Há mais de cem anos Max Weber (1864-1920) descreveu a
noção de trabalho no espírito capitalista. A obrigação de ter uma profissão,
com horários e regras determinadas e retorno financeiro que permita a
sobrevivência. O trabalho como vocação, fim absoluto em si mesmo. Himanen cita
autores que escreveram sobre o trabalho (principalmente autores ligados à
religião) e faz um contraponto entre o trabalho em rede colaborativa. O Hacker
trabalha sem horário fixo, sem a pressão do patrão exigindo resultados, sem
visar o lucro ao final da tarefa. E mesmo sem essas pressões, há disciplina,
motivada pela paixão em obter resultados que o tornem reconhecido por seus
pares. Para o autor, a lógica dessa ética está justamente em burlar o já
conhecido comportamento vigente no capitalismo.
No segundo capítulo, a relação do
tempo dedicado ao trabalho na ética protestante é comparada ao uso do tempo no
universo hacker. Se tempo é dinheiro, é perda de tempo se dedicar a um trabalho
sem remuneração? A relação com o tempo dedicado ao trabalho, na ética
protestante, se limita à obrigação de trabalhar em horário pré-determinado em
horas e dias, pois trabalho é sacrifício. Na era da informação, o tempo ganhou
uma racionalização ainda maior, pois a velocidade das inovações tecnológicas
propõe o imperativo da corrida contra o relógio. Para os hackers, trabalho é
prazer e eles trabalham em horários alternativos. A flexibilidade propõe o
trabalho lúdico, onde e quando quisermos, por isso é possível ser feliz em
horário comercial, e usarmos a madrugada para trabalhar, pois a rede não pára.
Assim o hacker trabalha quando a criatividade o motiva, cumpre suas tarefas e
não sua jornada e assim, tem tempo para ‘viver’.
Himanen analisa ainda a ética do dinheiro, como motivo e interferindo no processo de vida
e aprendizagem do ser humano. Na ética protestante a semana era dedicada ao
trabalho e o domingo era dia sagrado ao descanso. Mas se dinheiro é um fim em
si mesmo e a lógica capitalista dita o tempo (ritmo de trabalho), então domingo
atualmente é dia de labuta, pois o consumo é motivação. Diferente do ritmo de
trabalho hacker, que concebe um domingo de trabalho, se na quinta ou sexta o
tempo foi dedicado à família. No capitalismo o domingo de trabalho é puramente
para aumento dos lucros.
No campo da aprendizagem, para o
capitalismo as boas idéias são propriedades de quem as teve, principalmente se
geram dinheiro. Então compartilhar informação, como bem poderoso e positivo não
se explica. Mas um grupo se difere, até mesmo no capitalismo, com um modelo
aberto de gerar conhecimento: a comunidade científica, que historicamente
sempre trabalhou partindo de um problema ou objetivo no qual o indivíduo tem
interesse pessoal e é um entusiasta, acha sua solução particular e qualquer um
poderá utilizar, criticar e desenvolver esta solução. Mais importante que qualquer
resultado final é a informação ou cadeia de argumentos subjacente que produziu
a solução. As fontes sempre são citadas
e a nova solução não pode ser mantida em segredo e sim publicada novamente. E
esse modelo sem ausência de estruturas rígidas, que congrega paixão e trabalho
em grupo, está na prática hacker, que parte em busca da solução de problemas e
submete seus resultados a diversos testes. Aprender cada vez mais é o objetivo
desse universo e um professor ou pesquisador, neste universo, é alguém que, muitas vezes, acabou de aprender e já quer ensinar. Himanen denomina esse processo de
‘Academia da Rede’.
Na última parte da obra, o autor
fala sobre a ética da Rede e a netiqueta
(boas maneiras observadas na comunicação na Rede) e sobre o espírito do
informacionalismo. Segundo ele, quanto mais eletrônica se torna nossa era, mais
deixamos vestígios ao navegar pela rede, fazer compras nas lojas, preencher
cadastros em repartições ou ao responder questionários em sites de pesquisa.
Nossos dados estão a todo momento sendo analisados, construindo um perfil de
usuário, que deixamos ao usarmos cartões de crédito, fazermos transações
bancárias, utilizarmos a internet e até mesmo o celular. Por isso os Hackers
estão preocupados com a privacidade e com a proteção dos dados dos usuários da
rede e prezam pela segurança no mundo virtual. A autoprogramação, o aumento do
tempo dedicado à Rede, a necessidade de manter-se atualizado com as inovações
crescentes, que teimam em nos deixar obsoletos com relação aos conhecimentos
gerados na nova tecnologia, nos faz dedicar cada vez mais horas ao trabalho. E esse é o espírito do
informacionalismo.
No informacionalismo, há o
resgate de virtudes do desenvolvimento pessoal, no sentido de racionalizar o
tempo e o esforço gastos nas atividades, já que há informações demais, é
preciso filtrar, selecionar e tomar as melhores decisões. Por isso é preciso
ter determinação, tranqüilidade, otimizar os processos _ ser efetivo no
‘agora’; ser flexível _disposto a mudar conforme as necessidades; ter
estabilidade _ manter a constância na
busca do objetivo; ter dedicação; ter consciência do valor do dinheiro necessário
para realizar desejos; contabilizar
resultados. E são essas virtudes que transformam a rotina nesses novos tempos:
a rotina dos processos nos negócios está em alteração, as linhas de produção
desnecessárias são eliminadas, as lentas são remodeladas de tal forma a serem
efetivamente produtivas, afinal a automação elimina tempo perdido. E todo esse
sistema passa a ser metáfora para explicar a ética que rege o
informacionalismo. Com esta ética virtual em voga, o autor percebe dificuldades
na aplicação da ética real. A lógica da velocidade, que tanto impera no
informacionalismo, é talvez a pior barreira para que a ética real aconteça.
Como se, em busca pela otimização, automação, e tudo o mais que rege esta era
que vivenciamos, a ética fosse algo à parte. E é exatamente isso que preocupa o
autor, que vê na ética Hacker um caminho diferente de comportamento na Rede.
Por isso Himanen propõe sete
valores da ética hacker: paixão (entusiasmo que move a aprendizagem); liberdade
(com o código aberto que permite o compartilhamento de conhecimento; com o
tempo, que os livra da rotina e da jornada de trabalho e os deixa livres para
trabalhar como e quando querem); valor social e abertura (que possibilita
receber reconhecimento ao compartilhar conhecimento, tornando-o comum a todos);
atividade (que envolve a liberdade de expressão em ação e privacidade para
proteger seu estilo individual de levar a vida e desprezo frente à
passividade): e cuidar (se preocupar com o futuro da sociedade virtual de tal
forma que oportunize a todos uma garantia de acesso). Esses valores juntos,
levam ao último estágio, quando o hacker se torna criativo porque utiliza suas
habilidades, superando-se, e dando ao mundo contribuições valiosas.
Por fim, a obra nos apresenta um posfácio,
escrito pelo sociólogo Manuel Castels, que retoma o contexto em que vivemos e
as mudanças do paradigma da era industrial para a era da informação.
A ética Hacker e o espírito da
era da informação é um livro positivo, porque aponta para uma cultura e uma
ética mais humana neste contexto vigente que é o capitalismo. É muito bom ver luz no fim do túnel. As transformações éticas que vinculam tecnologia, democracia e desenvolvimento
social e humano já começaram. Mas sem ingenuidade, pois é um processo ético lento, que envolve uma minoria, pois o capitalismo
tem teias amplas e o dinheiro ainda é um valor forte em si mesmo, mas pelo menos, é um começo. E tomar consciência que a colaboração é o caminho humano que resta.
Vale a pena ler este livro.
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