Foi um choque ver o corpo da vovó, dentro de um caixão, no meio daquela sala tão cheia de boas lembranças. Ver a casa cheia de gente triste. Velar, noite adentro. Orar e abraçar, abraçar e acolher o choro do outro, como a coisa mais natural a se fazer. Ver os netos carregando caixão... Tudo junto, um choque.
Eu já havia chorado em minha casa, assim que soube da partida. Então fiquei observando, conversando, e como parte do meu processo de despedida, fechando esse ciclo que iniciei quando comprei minha primeira câmera, enquadrando os acontecimentos ligados à minha avó.
Tenho horas de gravação com ela. Em diversos formatos, desde 1991. Tenho fotos e mais fotos, da analógica à digital.
E para mim era mais do que natural que eu me sentisse à vontade para registrar tudo.
Acho que me acharam mórbida.
Mas sei que ela compreenderia.
Ela que se deixou fotografar na feira, comprando de um tudo, tratando galinha, fazendo doces, mexendo em panelas, costurando, bordando, dormindo, comendo. Ela que se deixou filmar entubada. Em UTI. Dopada. Tomando banho sozinha (e perguntando toda hora se eu estava fotografando suas partes). Ela que sempre soube ser a minha modelo preferida.
Então fui olhando pelo visor e abstraindo. Eu já havia dito a ela um dia que não fotografava ou filmava minha avó, mas um ser humano que envelhece.
E ela apenas riu naquela ocasião. Então tentei fazer o mesmo neste processo de despedida. Era a despedida de uma senhora querida, com 96 anos de belas histórias.
Casa cheia, gente na rua, movimento de muitos que gostavam dela e também vieram se despedir.
Mas quando o caixão foi tampado, eu desabei por baixo dos meus óculos escuros. Ali não havia mais a documentarista. Era a neta quem via décadas de convivência com o amor de vó, indo embora.
Acho que nem vi o que fotografei. Mas a câmera viu...
Ao longo da noite de ontem e do dia de hoje, fomos chegando, eu, JR, Celo, Rogério, Neto, Nícia. Os netos que sempre estavam juntos nas férias, estavam ali para se despedir dela.
E eu fui meditando o quanto aquela senhora era agregadora. Ela ainda nos unia, porque nossa família foi esfacelada por questões de herança quando da partilha dos bens de meu avô, pelos irmãos.
E nós, os netos, tínhamos pago um preço alto, no final da adolescência, início da vida adulta. Havíamos deixado de conviver.
E todos nós estávamos conscientes de que agora não temos mais o almoço do dia de Natal, nem o dia 11 de março, quando sempre estávamos lá para festejar o aniversário dela. E sabemos que só depende do nosso esforço conjunto, para que o que restam dos laços, não se desmantelem. Porque não iremos mais à Vila do Conde, à casa da vovó.
Então eram muitas despedidas.
Do espaço físico. Dos objetos. Dos retratos. Das lembranças de boa parte da nossa infância.
E depois do enterro, para o último almoço na mesa da copa, ficamos rindo das coisas que ela fazia, das broncas que dava na gente, do jeito de falar, de nos entupir de comida, merendinhas...
E eu tive certeza que ela nos quer juntos. Tenho certeza que nos quer reunidos em mesas.
2 comentários:
O que dizer? Posso dar um abraço?
Amo você.
Obrigado por compartilhar esses momentos e me contextualizar nessa sua tao bela homenagem. Fiquei imensamente feliz de ter tido essa sorte. Muita luz! - Emerson
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