Ontem eu acabei expondo meu conflito atual, Áquila: detonar você, coisa que nunca fiz. JR e Marcelão sempre conseguiram ver seus piores defeitos, enquanto eu fazia pose de boa filha, que só vê as qualidades. Pois ontem, na terapia, uma criatura amarga, com raiva, magoada com sua desorganização e irresponsabilidade veio à tona e pôs no palco da vida nosso drama.
Em 2005, quando vendeu seu carro, você não procurou saber se o cara que comprou tinha realmente passado o veículo pro nome dele. Em 2007, no hospital, perguntamos tantas vezes se havia algo pra resolver e você disse que não.
Agora nos chegam contas dessa total falta de controle sobre sua própria vida. O cara usando o carro como bem quis... estacionou em calçada, andou com fones no ouvido, ultrapassou sinal vermelho, fez e aconteceu e a conta nos chega em seu nome, junto com seis anos sem pagar licenciamento, IPVA, DPVAT e todas as taxas cobradas pelo estado. Um estado que nunca teve a competência (em seis anos!!!) de realizar uma abordagem a este motorista canalha, que usa seu nome, Áquila, para abusar no trânsito. Um estado que nunca foi capaz de multar de fato quem dirigia o veículo. Sim, porque quem tem o nome sujo é um defunto.
Você não tem idéia do quanto eu já tive que andar, perder tempo e gastar dinheiro, tentando resolver essa maluquice toda. E não há, em nenhum dos seus cadernos e anotações, o nome do canalha que comprou esse carro.
Tá pai, tô triste. Em ter que, finalmente, assumir que você era irresponsável, que não estava aí pra ninguém, que não se importava de fazer as pessoas assumirem seus problemas. É tão difícil pra mim, sabe? pra eu tirar você do pedestal que te coloquei. Eu sempre vi tudo isso, mas abstraí, sabe? eu só lembrava do homem maravilhoso que sempre foi meu melhor amigo.
Amigo de verdade, com quem eu falava de todos os meus conflitos, papos de namoro, sexo, religião...
Ficaram os diálogos ricos, cheios de ensinamentos. Aos 13 anos e meio, quando o primeiro guri que eu paquerei me mandou uma carta acabando tudo, você prontamente me falou da efemeridade dos relacionamentos, do quanto era preciso perceber que quando o outro não quer, não adianta sofrer; que eu estava com mais pena de mim por ter sido preterida do que sofrendo de amor de verdade; que o tempo cura tudo e novos amores chegariam; e que a vida precisava seguir e que você não ia admitir que namoricos interferissem na minha rotina ou no meu rendimento como estudante. É, foi pra vida inteira...
E quando eu precisava me confessar com o padre, aos 11, na primeira comunhão, e te perguntei se era pra contar que eu me masturbava? você na hora: o que você faz com seu corpo machuca você? prontamente respondi que não. Machuca alguém? uai, também não. "Então, minha filha, não é pecado e não deve ser contado ao padre". E assim foi. Nunca encarei meu corpo e meu prazer como pecado.
E logo que menstruei você me chamou pra um dedo de prosa. E perguntou "você sabe o que muda agora no seu corpo e na sua condição de mulher?" e eu disse que agora eu já ovulava. Exato. Eu já podia ser mãe. Muito cuidado com quem tocava meu corpo, do que faria nos meus namoros, como deixaria ser tocada. Primeiro porque se eu tivesse filho, só eu e somente eu teria alterações em meu corpo que talvez não estivesse preparado. E alterações na minha vida que com certeza não estaria. E me disse duas coisas: que meu corpo era meu templo e só deveria deixar entrar em meu templo quem realmente eu gostasse, confiasse, para que não me sentisse usada, violada. E depois, que filho fora de hora não é uma aventura qualquer. Seria uma carga complicada. Resultado: eu sempre escolhi com carinho, e critério, as pessoas com quem me relacionei e filho? só Arthur, planejado e amado.
Tem tantas outras conversas, tantas outras histórias... sobre drogas, sobre homossexualidade, sobre vida independente, sobre escolhas...
Você ganhou minha confiança, quando eu, aos 7 anos, depois te ter visto o livro sobre sexo, do pai de minha coleguinha Christimary, que era médico, com uma foto onde um casal estava nu. E eu perguntei pra minha mãe se os adultos dormiam nus e ela disse que não e perguntou com voz de poucos amigos de onde eu tinha tirado aquilo. E eu só pensei: ela tá mentindo. Eu tinha visto a foto e lido ali que os casais tinham vida partilhada. E fui direto pra você, com a mesma pergunta. E você, prontamente, disse que sim, dormiam nus e se acariciavam porque existia amor e afeto e era assim que os bebês nasciam. E na semana seguinte chegou uma coleção sobre sexo para crianças e adolescentes do círculo do livro. Ali, Áquila, você ganhou a minha confiança para sempre.
Mas acho que o que mais me magoa pai, é que você sabia exatamente o que me falar mas não sabia o que fazer com sua própria vida. Eu sempre pesei o quanto foi importante ter esse homem que falava comigo como se eu fosse um ser sem gênero. Não era tratada como menina nem como menino, era tratada como filho que deve aprender com pai o que é preciso para dar conta da vida. E isso foi mágico pra mim. Eu consigo gostar da sua obra. Gosto do meu jeito de lidar com tanta coisa. E sei do dedão teu em tudo isso.
Mas não gosto de ver que as pessoas tinham razão de falar mal de você. Não gosto de ter que reconhecer o quanto você era diferente do que pregava. Sempre foi difícil reconhecer que jogo, bebida e cigarro afundavam a imagem de homem, de marido e de pai amado.
Mas eu queria te dizer que passada a raiva, feita a confissão, eu amo você, amo muito, amo sua essência, e sei que, onde quer que estejas, fizestes muito por este espírito aqui, esse que você ajudou a evoluir, e por essa mulher que ajudou a moldar.
3 comentários:
Emocionei. Senti junto com você a raiva e a admiração por seu pai. É nessas horas que tenho mais certeza de que a terapia faz um bem danado...
Beijo, amiga!
até que enfim deu uma bronca no sujeito. hehehe
Foi lindo seu desabafo, linda a confissão e mais lindo ainda foi perceber o que tinha de raiva e de verdade em tudo aquilo.
Linda a quebra do estereótipo que você mesma criou, a admiração que apesar de tudo ainda tem e lindo o amor que sente, e este, é eterno.
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